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domingo, 27 de novembro de 2011

Acidente da Chevron: as mentiras de uma tragédia anunciada

Por Joaquim Maia Neto

Vazamento de óleo em poço da Chevron
 no Campo de Frade - Bacia de Campos
Foto: Divulgação/Estado do Rio de
Janeiro

Passados vinte dias do vazamento de óleo no poço explorado pela petroleira estadunidense Chevron-Texaco, localizado na Bacia de Campos, temos mais perguntas do que respostas sobre o problema. O que existe de certeza é a total má fé da empresa responsável pela exploração. Com diversas mentiras, a petroleira tentou enganar a opinião pública e as autoridades. Primeiro a Chevron informou que o vazamento era consequência de uma fissura natural no leito do oceano, o que foi desmentido posteriormente pela própria empresa diante das evidências em contrário. Novas mentiras se sucederam sobre a dimensão do problema. Imagens de satélite da NASA apontam para um derramamento da ordem de 3700 barris por dia, mais de onze vezes maior que o informado pela Chevron. A Polícia Federal constatou que apenas um navio estava fazendo o trabalho de limpeza da região afetada, ao invés dos dezoito que a empresa informou em nota oficial. O delegado responsável pelo inquérito não obteve da Chevron, até o momento, a informação sobre o destino do óleo retirado do mar, o que o leva a questionar se realmente a limpeza está sendo realizada, pois se o petróleo é retirado, tem que ser destinado a algum lugar. As notícias mais recentes demonstram que ao contrário do que se previa inicialmente, parte do óleo deve chegar às praias do litoral sudeste e que o acidente pode ter proporções muito mais graves do que se imagina, pois pode ter havido ruptura do reservatório.
Entre as inconsistências apontadas pela Polícia Federal está o fato de que o equipamento utilizado pela plataforma para observar o local de perfuração não tem capacidade para alcançar os 1200 metros, que é a profundidade na qual está o vazamento. A observação é fundamental para se detectar o acidente no início e consequentemente iniciar as medidas de contingência necessárias à minimização do impacto ambiental. Há suspeitas de que a Chevron tentava ilegalmente alcançar a camada pré-sal, já que operava com uma sonda capaz de perfurar 7600 metros de profundidade, quando estava autorizada a explorar até uma profunidade de cerca de 2500 metros.
Entre as perguntas que permanecem sem resposta estão aquelas sobre a atuação do IBAMA e da ANP. Será que a licença de operação foi concedida após o atendimento de todas as condicionantes previstas nas licenças prévia e de instalação, ao contrário do licenciamento da UHE de Belo Monte, onde diversas etapas foram queimadas? Foi exigido equipamento de observação compatível com a profundidade explorada? Os estudos ambientais foram suficientemente detalhados a ponto de se prever a possibilidade deste acidente? A Chevron comprovou que dispõe dos equipamentos necessários ao atendimento de emergências ambientais no local do acidente? Quantas vezes o IBAMA e a ANP fiscalizaram o local da exploração para verificar se as condições necessárias para a expedição de licenças e outorgas estavam sendo cumpridas?
Neste ano a Justiça do Equador multou a Chevron em um valor equivalente a 13 bilhões de reais devido à poluição com óleo na Floresta Amazônica. No caso brasileiro, até agora as multas administrativas não passaram de 150 milhões de reais, o que equivale a dois dias de faturamento da empresa. O caso brasileiro deveria levar à cassação da licença e da outorga, impedindo que a petroleira continue atuando no país.
Várias lições podem ser tiradas deste triste episódio, já que o acidente ocorrido no ano passado na plataforma da British Petroleum, no Golfo do México, não foi suficiente para que as autoridades brasileiras se preparassem para uma situação de emergência, e nem mesmo para prevenir esse tipo de desastre.
Desde 2003 patina no Governo Federal a construção de um plano nacional de contingências para acidentes com óleo. Apesar da necessidade de envolver várias áreas do governo, a elaboração e coordenação do plano cabem ao Ministério do Meio Ambiente. Não saiu simplesmente porque o governo não prioriza a área ambiental. Enquanto estimula os investimentos em setores com alto potencial de impacto, a presidente Dilma negligencia solenemente as necessárias contrapartidas na prevenção, proteção e conservação ambientais. Recentemente a ministra Izabella Teixeira publicou uma série de portarias simplificando o licenciamento ambiental, inclusive para empreendimentos de petróleo e gás.
O orçamento do Ministério do Meio Ambiente, que cuida de toda a política ambiental brasileira, incluindo suas autarquias vinculadas, é de cerca de 10% do orçamento que os EUA destinam somente à agência de proteção ambiental e à guarda costeira, que lá tem a atribuição de fiscalizar acidentes com óleo no mar. Dizer que não se pode comparar nosso país com os EUA é um argumento que não se aplica neste caso, pois os investimentos em exploração de petróleo no Brasil são imensos e a descoberta de óleo na camada pré-sal está colocando o país na condição de mega-produtor mundial, o que exige um investimento compatível com os riscos inerentes à expansão do setor.
O IBAMA tem sido pressionado a conceder licenças a “toque-de-caixa” e isso faz com que o princípio da precaução seja deixado de lado. Como as respostas às perguntas apresentadas acima ainda não foram dadas, não podemos afirmar que este foi o caso do licenciamento da plataforma da Chevron, mas o acidente tem o caráter didático de mostrar porque o licenciamento ambiental não pode ser um mero procedimento cartorial como querem empresários, políticos e parte da mídia que insiste em criticar o IBAMA pela demora na liberação das licenças. O enfraquecimento da atuação da União na área ambiental promovido pelo governo, em especial do IBAMA, colocará o Brasil numa condição de grande vulnerabilidade.
É interessante notar que setores da imprensa como, por exemplo, a Rede Bandeirantes, personificada nas figuras do âncora Ricardo Boechat e do comentarista econômico Joelmir Beting, têm se manifestado criticamente em relação à omissão estatal diante do acidente da Chevron, enquanto patrocinam o desmonte da legislação florestal com matérias jornalísticas altamente tendenciosas lastreadas em informações distorcidas e inverídicas. É preciso que a sociedade compreenda que as questões ambientais estão todas interligadas e que negligenciar a área traz resultados catastróficos com este.
Nos EUA, onde a legislação é muito mais rigorosa em termos de responsabilização dos envolvidos em acidentes ambientais, houve negligência na regulação do setor petroleiro e essa foi uma das causas do acidente da BP. Se em um país que tem orçamento muito maior para lidar com o assunto e que dispõe de funcionários do governo bem remunerados e equipados, acontece um desastre como o do ano passado, o que irá acontecer no Brasil, onde o governo desmonta a legislação ambiental e as instituições responsáveis pela sua aplicação? A carreira ambiental do governo é uma das menos valorizadas e o nível de defasagem remuneratória a torna pouco atrativa e promove a fuga de técnicos gabaritados para outras carreiras ou para a iniciativa privada. Cria-se assim a condição ideal para uma regulação frouxa, que permite que as empresas se tornem negligentes para com suas obrigações.
É praticamente uma heresia questionar os investimentos brasileiros na exploração de óleo na camada pré-sal. Atualmente só se discute o que fazer com o dinheiro advindo de tal exploração, levando até mesmo a uma grave ameaça ao pacto federativo devido à guerra instaurada pela disputa dos royalties entre os chamados “estados produtores e não-produtores”. Não se lê uma linha com uma postura crítica sobre o assunto. Os questionamentos essenciais quase nunca são feitos e são considerados coisa de gente não patriota. Num momento em que o mundo discute a redução das emissões de gases do efeito estufa para salvar o planeta, o Brasil investe pesado na exploração de um hidrocarboneto, contribuindo para que a matriz energética mundial se torne menos limpa. Pior do que isso é o país estar muito preocupado em explorar os recursos naturais, e quase nada preocupado em conservar a natureza que permitiu ao longo de milhões de anos que os seres vivos que morreram naturalmente fornecessem o carbono necessário à formação das reservas de petróleo.
Nas discussões sobre o destino das royalties, há propostas para financiar educação, saúde e outras demandas sociais, mas não se fala em garantir parte destes recursos para fortalecer o aparato ambiental estatal, o que seria lógico diante do aumento do risco e dos impactos ambientais que a expansão da exploração de petróleo está causando.
Manifestantes do Greenpeace em frente à sede da Chevron
no Rio de Janeiro
Foto: Divulgação/Greenpeace

Considero um grande atraso investir na produção de combustíveis fósseis no atual contexto de tecnologias disponíveis para produção de energia limpa, cada vez mais baratas e viáveis. Mas deixando a minha “heresia” de lado e sendo um pouco pragmático, só vejo viabilidade ambiental na exploração do pré-sal se houver um grande aumento nas exigências às empresas exploradoras e um grande fortalecimento da ANP e da área ambiental do governo, para que se faça uma regulação de verdade, ao invés deste arremedo regulatório que existe hoje. Se o caminho não for este, transformaremos a “Amazônia Azul”, que a Marinha do Brasil tanto enaltece, num gigantesco tambor de óleo.

domingo, 20 de novembro de 2011

Madames de Moema versus bicicletas: quem tem razão?

Por Joaquim Maia Neto
Na semana que passou um irreverente protesto agitou o bairro paulistano de Moema, uma das regiões mais ricas da cidade. Denominado “Milionárias de Bike”, o movimento reuniu ciclistas que pedalaram de salto alto na ciclofaixa recém inaugurada no bairro.
O protesto foi motivado pela declaração da comerciante Carolina Maluf, que atua na região, indignada com a existência da ciclofaixa e com a redução de vagas para estacionamento de automóveis. A empresária afirmou, irritada, que suas clientes milionárias não poderiam ir até sua loja pedalando, calçadas com sapatos de saltos altos.  
A aparência folclórica da declaração e o tom de bem humorado do protesto não podem nos levar a subestimar o conflito crucial para o futuro das grandes cidades que está por trás deste assunto. O que se discute são soluções para os problemas de mobilidade urbana e de degradação ambiental causados pelo número excessivo de automóveis que circulam nas urbes do país.
Manifestante no protesto "Milionárias de Bike"
Foto:Patrícia Cruz/Folhapress

O Brasil, ao contrário de muitos países europeus que são referência em mobilidade urbana, adotou, de uma maneira geral, um modelo de planejamento das cidades que privilegia a ocupação do espaço público pelo carro em detrimento dos pedestres e da convivência harmônica entre as pessoas e destas com a natureza e com as áreas comuns. Este modelo sempre foi nefasto. Durante o longo período em que o Brasil tolerou com passividade o abismo social que separava a maioria rica da minoria quase miserável, o problema afetava apenas os pobres, que não dispunham de recursos para adquirir um automóvel - sonho de consumo do brasileiro - e que tinham seu direito à mobilidade usurpado pela má qualidade ou pelo custo proibitivo do transporte público. Criou-se a cultura de que transporte coletivo público é “coisa para pobre”. Quem tem dinheiro anda de carro.
Com a recente melhoria na distribuição de renda e a consequente ascensão à classe média de parcela significativa da população brasileira, a propriedade de automóveis se popularizou. Pessoas que não dispunham desse bem, passaram a adquiri-lo e nas casas onde já havia um automóvel da família, tornou-se comum haver um carro para cada membro habilitado a dirigir. O resultado é o que vemos atualmente: um colapso na capacidade de locomoção nas grandes e médias cidades e uma forte redução na qualidade do ar daquelas maiores. A solução mais comum encontrada pelos prefeitos e governadores é investir em obras viárias caras que facilitam a corrupção e desperdiçam dinheiro público. O governo federal, por sua vez, age na contramão da solução do problema, promovendo incentivos fiscais à aquisição de veículos automotores como forma de aquecer a economia.
Ocorre que já começa a ficar explícito que as soluções adotadas até agora não passam de “enxugamento de gelo”. Quanto mais se investe em obras viárias e se populariza o uso do automóvel, mais problemas aparecem. Se não houver mecanismos de planejamento urbano voltados à adaptação do espaço público às pessoas e não ao carro, aliados a uma forte regulação estatal sobre o uso do automóvel, o caos se instalará. Na verdade já se instalou em cidades como São Paulo e Belo Horizonte e está próximo em outras como Brasília e Recife.
Ciclovia da Radial Leste e o Trânsito de São Paulo

Sabendo do óbvio, administradores públicos começam a se mobilizar, ainda de maneira tímida e pontual. A ciclofaixa em Moema é uma das ações que são parte da solução do problema, assim como outras que começam a ser adotadas, como expansão do metrô, implantação de corredores de ônibus e de pontos de aluguel de bicicletas, restrição de circulação de carros no centro da cidade, entre outras. Porém, os mesmos gestores que de um lado adotam políticas de mobilidade corretas, de outro reproduzem na prática administrativa a cultura dominante que privilegia o transporte individual. Na maioria das  cidades onde as ciclovias ou ciclofaixas começam a se tornar realidade, trata-se o uso da bicicleta como apenas uma opção de lazer e não de transporte. É comum encontrar ciclofaixas que só funcionam nos finais de semana ou que levam do “nada a lugar nenhum”. Muitas cidades restringem o acesso de bicicletas nos trens, mesmo as dobráveis. Quanto ao transporte coletivo urbano há a mesma visão míope que paira sobre a bicicleta, só que de modo inverso: “é só para ir ao trabalho”. Nos finais de semana o número de linhas e a frequência de ônibus diminui drasticamente podendo inviabilizar o lazer de quem ainda não tem carro e obrigar muitas pessoas a usarem o automóvel quando poderiam se deslocar, com mais segurança, usando o transporte público.
As posturas da maioria das empresas e os comportamentos individuais também são grandes empecilhos ao desenvolvimento da cultura do transporte público. Em muitos lugares o empregado que resolve ir trabalhar de bicicleta é visto como um “ET”. As empresas não disponibilizam lugares para guardar a bicicleta, nem armários e banheiros, que podem ser necessários nos casos de necessidade de troca de roupa. Há também a questão do status. O trabalhador que chega ao trabalho de carro, ainda que tenha amargado horas no congestionamento, é visto como uma pessoa de sucesso, principalmente se seu carro for grande, daqueles que emitem mais carbono. Aquele que vai ao ponto de ônibus é visto como um “coitado”. 
Corredor de ônibus
Fonte: www.skyscrapercity.com

É raro ver alguém mais abastado reivindicando melhorias no transporte público. Como as pessoas que podem se dar ao luxo de andar de carro se recusam a usar o transporte coletivo, que no geral ainda é muito ruim, não se cria demanda necessária para sensibilizar os governantes quanto à melhoria do sistema de transportes. Por outro lado, são comuns as reivindicações de novas faixas de rolagem, novas pistas, viadutos, estacionamentos. Cidades como Brasília e São José do Rio Preto, numa total falta de bom senso, estão discutindo a necessidade de estacionamentos públicos subterrâneos, que só servirão para aumentar a quantidade de carros em circulação, quando o ideal seria disponibilizar aos cidadãos mais ônibus, metrô, ciclovias, calçadas, integração entre os modais (inclusive tarifária), faixas de pedestres, praças e áreas verdes.
A gritaria das milionárias de Moema sempre vai existir, pois infelizmente tem muita gente que, de maneira quase irracional, prefere passar horas presa no trânsito, amenizando seu estresse com boa música, ar condicionado e reclamações, do que convier com pessoas diferentes, seja em um vagão de metrô ou em um ônibus. Preferem gastar seus tênis caros nas caras academias. Para ir às compras, só de salto alto. Mas as bicicletas as atrapalham...

domingo, 13 de novembro de 2011

Mais um parque retalhado: Serra da Canastra - o berço do São Francisco


Por Joaquim Maia Neto

O Parque Nacional da Serra da Canastra foi criado em 1972 para proteger uma área de extrema importância ecológica. O contexto da época era de pouquíssima preocupação com as questões ambientais. No mesmo ano as Nações Unidas realizaram pela primeira vez, em Estocolmo, uma conferência para discutir como desenvolver o mundo sem esgotar os recursos naturais ou comprometer drasticamente sua qualidade. Apesar da incipiente preocupação ambiental, há quase quarenta anos atrás os atributos naturais das Serras da Canastra e da Babilônia, bem como dos seus vales, rios e nascentes, de tão exuberantes, despertaram no poder público a preocupação em conservá-los para o futuro. 
Localização do Parque Nacional da Serra da Canastra
O Decreto que criou o Parque delimita uma área de aproximadamente duzentos mil hectares, abrangendo territórios de seis municípios mineiros e uma rede de nascentes e cursos d’água que abastecem as bacias hidrográficas dos rios São Francisco, Grande e Araguari (estes dois últimos pertencentes à bacia do Paraná). A riqueza hídrica da região talvez tenha sido a maior motivação para a criação da unidade de conservação, especialmente pelo fato de que a Serra da Canastra abriga a nascente histórica do Rio São Francisco. Algumas pessoas argumentam que o governo militar que dirigia o país naquele período teria mais motivações relacionadas à segurança nacional do que propriamente ambientais. Independentemente da motivação é inegável que, do ponto de vista ambiental, a área atingida pelo Parque faz jus a um manejo de proteção integral, pois todos os estudos científicos produzidos sobre a unidade, sua biota e seus ecossistemas demonstram haver, naquele local, extrema relevância para a conservação da biodiversidade.
Após a criação da unidade de conservação, o Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal – IBDF, autarquia federal que era responsável pela administração do Parque, iniciou a retirada do gado que ocupava parte da Serra da Canastra, o que levou à precipitação de vários conflitos que culminaram com a remoção truculenta das pessoas que ocupavam a área. Muitas dessas pessoas eram legítimos proprietários e tiveram que deixar suas propriedades recebendo apenas títulos da dívida agrária. No final da década de 70, toda a Serra da Canastra havia sido desocupada, mas ainda restavam a Serra da Babilônia e os Vales dos Cândidos e da Babilônia, que ainda permaneceram ocupados. O governo federal trabalhou na implementação da área desocupada e “esqueceu” as demais áreas. Com o tempo, o Parque se consolidou nos 71525 hectares da Serra da Canastra e tanto o IBDF quanto seu sucessor, o IBAMA, simplesmente ignoraram a área constante do decreto de criação da unidade. O IBDF chegou ao cúmulo de elaborar um plano de manejo que contemplava apenas as terras desocupadas o que fez com que as pessoas que ocupavam as demais áreas do Parque entendessem que estas tinham sido desafetadas. Na realidade, jamais existiu qualquer ato normativo que tivesse reduzido a área do Parque. A partir de 1988, por força da Constituição Federal, desafetações em áreas de unidades de conservação só podem ser feitas por Lei.
Apenas no ano de 2001 o IBAMA, que havia assumido a gestão do Parque em 1989, se deu conta de que não havia concluído o processo de regularização fundiária da unidade de conservação e resolveu cumprir sua obrigação, iniciando a elaboração de um plano de manejo para a área total, que prevê a desapropriação das terras que ainda não haviam sido regularizadas. Entre o ano de sua criação e o “despertar” sobre o erro que cometeu, o IBAMA chegou a emitir anuências para empreendimentos de mineração dentro do perímetro do Parque, pois sequer sabia que estas áreas se encontravam dentro dos limites da unidade. 
Lobo-guará no PARNA Serra
da Canastra
Foto: João Zinclar
Durante a elaboração do atual plano de manejo, que contou com estudos de renomados pesquisadores, ficou evidente a necessidade de conservação das áreas que ainda estavam ocupadas. Foram descobertos ecossistemas frágeis, espécies endêmicas, áreas naturais importantes em situação de ameaça e belezas cênicas em processo de destruição por atividades minerárias. Estudos com mamíferos ameaçados demonstraram que apenas a área regularizada não é suficiente para a conservação das populações dessas espécies no longo prazo. Essas descobertas chegaram num momento no qual a União se via obrigada a avançar na conservação do bioma Cerrado. Considerado um hotspot – bioma com alta biodiversidade e alto grau de ameaça – o Cerrado sofre com a expansão da fronteira agrícola e com a degradação de sua vegetação nativa. As metas de áreas protegidas no bioma ainda não foram alcançadas e a decisão tomada não poderia ser mais coerente: Se há necessidade de criação de novas unidades de conservação para proteger o Cerrado, não se pode abrir mão de uma área já criada, ainda mais com a relevância encontrada no Parque Nacional da Serra da Canastra, cabendo assim ao poder público providenciar a implementação do restante da unidade.
A decisão do IBAMA implicou novos conflitos. Além da população local e de proprietários de terras do Parque residentes em São Paulo e outras regiões de Minas, setores ligados à mineração passaram a exercer forte pressão política para a revisão dos limites da unidade de conservação. Na Canastra há grandes jazidas de diamante, e mineradoras estrangeiras com subsidiárias no Brasil não pouparam esforços em convencer parlamentares e ministérios da necessidade de desafetação. O IBAMA e posteriormente o Instituto Chico Mendes, que assumiu a gestão das UCs federais em 2007, prosseguiram nas ações de proteção previstas na Lei do SNUC, que são imprescindíveis no período que antecede a regularização fundiária. Na medida em que a União cumpria seu papel de proteger o Parque, cresciam as articulações políticas visando a desfiguração desta que é uma das mais importantes unidades de conservação do Cerrado.
Cachoeira Casca D'Anta,
na Serra da Canastra
Como resultado deste processo, a corda arrebentou do lado conservacionista, como vem sendo praxe no atual governo desenvolvimentista. Em 2007 os deputados Carlos Melles (DEM), Odair Cunha (PT), Maria do Carmo Lara (PT), Geraldo Thadeu (PPS) e Rafael Guerra (PSDB), todos de Minas Gerais, apresentaram e conseguiram aprovar na Câmara um projeto de Lei que retira 25% da área do Parque em benefício de mineradoras de diamante e quartzito, e de agropecuaristas que insistem em usar fogo para “renovar” pastagens, destruindo a vegetação nativa do Cerrado. O projeto foi aprovado com parecer favorável do relator na Comissão de Meio Ambiente da Câmara, o deputado Fernando Gabeira (PV-RJ) e agora tramita no Senado, onde foi designado como relator o senador Rodrigo Rollemberg (PSB-DF). Após a aprovação do projeto na Câmara, um de seus autores (Odair Cunha), não satisfeito com a desafetação de “apenas” um quarto do Parque, apresentou emenda na Medida Provisória 542/2011, que desafeta áreas em unidades de conservação da Amazônia para a construção de hidrelétricas. Pegando carona na iniciativa da presidente Dilma, inseriu um artigo, no texto a ser votado pelo Congresso, que exclui do Parque Nacional da Serra da Canastra os dois terços que ainda não foram regularizados.
Rodrigo Rollemberg é um senador que tem adotado uma postura responsável com relação ao meio ambiente (foi um dos poucos que votou contra o PLC 1/2010, que retira poderes do IBAMA), mas acabou apresentando um relatório prejudicial à conservação do Parque, induzido por um substitutivo apresentado pelo Instituto Chico Mendes (ICMBio) que foi acatado no relatório. O substitutivo visa transformar metade da área não regularizada em uma unidade de conservação da categoria Monumento Natural. Essa categoria, prevista no Sistema Nacional de Unidades de Conservação entre as unidades do grupo de proteção integral, tem como objetivo “preservar sítios naturais raros, singulares ou de grande beleza cênica”. Existem poucos Monumentos Naturais no Brasil. Em geral eles têm área pequena, restrita a um determinado atrativo e seu entorno. Apesar de serem de proteção integral, permitem a presença de pessoas nas áreas privadas, desde que desenvolvam atividades compatíveis com os objetivos da unidade.

Mapa representativo do substitutivo acatado no
relatório do senador Rodrigo Rollemberg (PSB-DF)

Num monumento natural de quase 67 mil hectares, como o proposto pelo ICMBio, com muita gente morando em seu interior, é praticamente impossível atingir objetivos de proteção integral. Nas unidades de proteção integral só podem ser admitidos usos indiretos dos recursos naturais, o que é inviável de ser alcançado com pessoas vivendo dentro de seus limites. O substitutivo incorporado no relatório do senador Rollemberg, estabelece que serão admitidas atividades “agrícolas e pastoris”. Essas atividades constituem-se uso direto dos recursos naturais e, portanto, o projeto contraria a Lei do SNUC. Não se pode ter uso direto em unidade de proteção integral. O ICMBio propõe o Monumento Natural dos Vales da Canastra sob o argumento de que assim poderá manterá um manejo mais restritivo, mas na prática não é o que acontecerá.
Pode ser que a estratégia seja manter as pessoas, para aliviar a pressão que levaria à perda de parte importante da unidade. No futuro poderia se fazer uma desapropriação negociada. Essa pode ser a visão dos técnicos que deram respaldo a proposta do ICMBio. No caso concreto, tal estratégia é fadada ao fracasso. A possibilidade oficial de manutenção das pessoas dificultará qualquer iniciativa de desapropriação futura e a agricultura e pecuária, que continuarão sendo desenvolvidas, descaracterizarão os atributos que justificam a criação de uma unidade de proteção integral. As áreas que deixarão de ser Parque são tão importantes quanto as que hoje estão regularizadas.
O caso está mais para uma estratégia no sentido de ludibriar a opinião pública. Adota-se o discurso da preservação quando na realidade o que ocorre é a exclusão de uma área extremamente importante do Parque Nacional. Quando o objetivo é a conservação da natureza, a possibilidade de desapropriações e retirada de pessoas é capaz de mobilizar políticos e dirigentes de entidades ambientais públicas no sentido contrário. O mesmo não ocorre quando os objetivos são empreendimentos que movimentam vultosos recursos financeiros. A grande maioria dos parlamentares e o executivo não se importam com a remoção das pessoas que vivem nas áreas que serão alagadas pelas usinas hidrelétricas do PAC, mas quando se trata de retirar pessoas e empreendimentos para implementar um Parque necessário, geram-se reações contrárias fortíssimas, capazes de retalhar um santuário, o berço das águas do São Francisco.

domingo, 6 de novembro de 2011

A renúncia da União na gestão ambiental brasileira

Por Joaquim Maia Neto
Com a aprovação no Senado do Projeto de Lei Complementar da Câmara (PLC) n° 1/2010, muito se tem discutido acerca da retirada de poderes do IBAMA, ou mesmo da desestruturação da autarquia. Caso seja sancionado, o projeto mutilará o IBAMA em suas atribuições, porém o problema é muito mais complexo do que aquilo que está sendo apresentado à sociedade.
Fonte: http://www.econexos.com.br/

Muitos entendem que se trata de mais um golpe, outra “tesourada” inserida em um processo do qual faz parte a criação de outros órgãos e entidades federais: a Agência Nacional de Águas - ANA, o Ministério da Pesca, o Instituto Chico Mendes e o Serviço Florestal Brasileiro - SFB, cada qual levando consigo, quando criado, parte das atribuições que eram do IBAMA. É verdade que tais órgãos ou autarquias reduziram a área de atuação do IBAMA, porém essa questão não tem a mesma natureza que tem o projeto recém-aprovado no Senado. É preciso que se entenda que há dois processos distintos em curso.
Um dos processos, que não guarda relação com o PLC 1/2010, refere-se à reorganização das atribuições federais na área ambiental. Com a criação do IBAMA em 1989, a União optou por executar suas atribuições de maneira descentralizada, criando uma pessoa jurídica distinta, com certo grau de autonomia, a fim de ter maior eficiência e eficácia nas suas ações. A posterior criação das instituições citadas que herdaram competências anteriormente exercidas pelo IBAMA foi apenas uma forma de especializar a atuação da União em algumas entidades, mantendo o caráter descentralizado, no caso da ANA e do Instituto Chico Mendes, ou “re-centralizando”, como no caso do Ministério da Pesca e do SFB, sendo que este detém certo grau de autonomia, conferida por meio de contrato de gestão com o Ministério do Meio Ambiente - MMA.
Há uma grande polêmica em torno da conveniência das “divisões” do IBAMA. Muitos defendem que houve uma quebra da “unicidade da gestão ambiental”, o que seria prejudicial à execução da Política Nacional do Meio Ambiente. Não acredito nisso. Por mais que possa ter havido interesse de alguns setores do governo em retaliar o IBAMA, à exceção do Ministério da Pesca, as demais instituições permaneceram vinculadas ao MMA, que manteve a governabilidade sobre a condução da política ambiental. ANA, SFB e Instituto Chico Mendes, conseguiram avanços significativos com a especialização, especialmente porque houve maior aporte de recursos para as áreas em questão. Não se pode dizer o mesmo sobre o Ministério da Pesca. A criação do órgão tirou parte da gestão pesqueira de uma entidade ambiental, deslocando-a para um órgão de fomento, o que gerou grandes conflitos e prejuízos significativos para a conservação. Perdeu-se a preocupação com a sustentabilidade dos recursos pesqueiros, que passaram a ser tratados com foco estritamente comercial em prejuízo da biodiversidade.
Antes da aprovação do PLC 1/2010, o enfraquecimento do IBAMA vinha acontecendo, sobretudo, pela forte ingerência política sobre a autarquia, inclusive na indicação de dirigentes, pelas campanhas de difamação contra a entidade, acusada injustamente de emperrar o desenvolvimento, e pelos ataques de setores do próprio governo, como a Casa Civil e Ministérios da Agricultura e Minas e Energia. Esses fatores atuariam contra o IBAMA mesmo num cenário de não divisão, de modo que a criação das outras instituições vinculadas ao MMA pouco contribuiu para isso.
O grande perigo que paira sobre a área ambiental é o outro processo, este sim, extremamente nocivo, do qual a aprovação do PLC 1/2010 é o episódio mais recente. Trata-se da descentralização da gestão ambiental da União para os demais entes federativos. A Constituição Federal de 1988, ao reconhecer o município como ente federado, instituiu certa descentralização política. A proteção ao meio ambiente entrou no rol das competências comuns, dispostas no artigo 23. Essa descentralização não foi ruim, pois estava em consonância com o artigo 225 que objetiva atribuir a responsabilidade sobre o meio ambiente a toda a sociedade, incluindo o poder público em todas as suas esferas. Foi necessária a publicação da Lei 7804, em 1989, para adequar a Política Nacional do Meio Ambiente à nova realidade, já que a Lei 6938 que a instituiu é de 1981, quando vigia outra constituição. 

Reunião entre MMA, IBAMA e
Secretaria de Meio Ambiente de SP,
na qual foi selada a descentralização
da gestão da fauna.
Foto: Divulgação MMA/Jefferson Rudy
 
Os problemas começaram em 1998. Com a hegemonia neoliberal ocorrida durante o segundo mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso, houve enfraquecimento do Estado, especialmente na esfera da União. Naquele ano, aproveitando-se da atuação crescente de alguns estados e municípios na área ambiental, muitos escritórios regionais do IBAMA foram fechados, sob o argumento que sempre é repetido pelos administradores da vez, o de que “o IBAMA deveria cuidar dos assuntos de interesse da União”. No início do governo Lula, o MMA implementou um programa de fortalecimento do SISNAMA, que tinha como foco a capacitação dos gestores municipais de meio ambiente e a criação das Comissões Tripartites. O objetivo era resolver conflitos de competência e incentivar o  engajamento dos municípios no licenciamento ambiental. Desde então, o próprio MMA e as sucessivas direções do IBAMA vêm trabalhando num processo autofágico de descentralização administrativa. Mais escritórios foram fechados e competências foram delegadas por meio de convênios como, por exemplo, com polícias militares na área de fiscalização e com secretarias estaduais de meio ambiente nas áreas de controle florestal e de gestão, manejo e autorização de criadouros de fauna silvestre.  Ao aceitar, ou melhor, ao fomentar um nível crescente de descentralização administrativa, MMA e IBAMA provocaram o acirramento da descentralização política que se configura com a Lei aprovada no Senado.
A queixa da ministra Izabella Teixeira é fruto da sua própria política. Ela própria, indiretamente, disse à sociedade que a União deve atuar menos na área ambiental. É sintomática a manifestação do presidente do IBAMA, em carta dirigida aos servidores da autarquia, na qual avalia que a Lei aprovada não é tão ruim assim e que afirma que, juntamente com a ministra, trabalhará pelo veto ao famigerado artigo 17. Ora, se na avaliação de seu presidente o IBAMA poderá continuar fiscalizando, por que pedir o veto? Ele afirma que se não houver o veto, não há grandes prejuízos. Qualquer um que se dignar a ler o artigo 17 da Lei aprovada e que conheça minimamente como se dão as coisas no âmbito da fiscalização, saberá que a maioria dos estados autuará justamente onde o IBAMA tenha autuado para que prevaleçam os autos de infração estaduais. Se o objetivo maior do IBAMA não é a esfera administrativa, como afirma o presidente (“eventual duplicidade de autuação atingirá unicamente a cobrança da multa, que não é nossa atividade finalística”), então não precisamos do IBAMA, bastam as polícias, militares e judiciárias, e o Ministério Público.
O veto ao artigo 17 é absolutamente insuficiente. O artigo 7º, XIII restringe as competências da União ao controle e fiscalização das “atividades e empreendimentos cuja atribuição para licenciar ou autorizar, ambientalmente, for cometida à União”. Até mesmo o Instituto Chico Mendes perderá a competência para fiscalizar empreendimentos ou supressão de vegetação nativa nas Áreas de Proteção Ambiental federais e nas zonas de amortecimento de suas unidades de conservação quando o licenciamento ou autorização de tais atividades estiver a cargo dos estados ou municípios. Além disso, no projeto há várias restrições no âmbito do licenciamento. Precisamos do veto integral ao projeto, mas isso parece quase impossível, já que nem mesmo o presidente do IBAMA e a ministra se dispõem a defendê-lo.
Fonte: http://www.consuladosocial.com.br/

O patrimônio ambiental brasileiro deveria ser encarado como interesse estratégico da União. Para tratá-lo assim, não são necessárias mudanças constitucionais. A nossa Carta Magna já permite uma regulamentação que atribua mais poderes à União na área ambiental. O artigo 225, § 4º considera vários biomas como patrimônio nacional. A competência fiscalizatória comum está garantida no artigo 23 e não precisaria ser assassinada. No âmbito do licenciamento, poderíamos garantir à União a atuação nos empreendimentos que já são constitucionalmente do seu interesse, entre eles os que explorem os seus bens (artigo 20 da CF), como terras devolutas, rios federais, potenciais hidrelétricos, minerais, cavernas e rodovias federais. Também deveriam estar entre as atribuições da União os licenciamentos de empreendimentos cuja competência para explorar ou autorizar é da própria União (artigo 21 da CF), como indústria bélica, portos, geração de energia elétrica, etc. O projeto original do deputado Sarney Filho (PV-MA) que foi desfigurado, direcionava neste sentido.
Nossa biodiversidade é o grande diferencial do Brasil e poderia ser aproveitada racionalmente para nos tornar uma potência ambiental, garantindo um desenvolvimento sustentável, que é bem diferente do atual modelo de crescimento, calcado na exportação de commodities. Isso é interesse da União, e sua gestão jamais poderia ser delegada a estados e municípios, principalmente no cenário brasileiro permeado por todo o tipo de pressão sobre prefeitos e governadores.
Ao meio ambiente está sendo conferida importância inferior àquela atribuída a algumas áreas que a União considera estratégica e por isso não as delega, como a organização do trabalho, as eleições, a previdência social e o ensino superior, só para citar alguns exemplos. Será que o meio ambiente, que garante a vida de todos nós, não deveria ser colocado pelo menos no mesmo patamar?