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sábado, 24 de dezembro de 2011

Reflexões natalinas*

Por Joaquim Maia Neto

Neste ano, resolvi mudar a tradicional “mensagem de boas festas”.  

Sempre desejamos um feliz Natal e um próspero ano novo, de maneira superficial. Parece uma obrigação lembrar das pessoas no Natal, cumprimentá-las e dar presentes às que são mais próximas.

Por que as pessoas dão presentes no Natal?

Mais do que manifestar o carinho pelo outro, o ato se transformou numa exigência introduzida nas nossas mentes por um poderoso sistema capitalista que valoriza as pessoas de acordo com o que elas podem consumir. E é incrível como não percebemos isso! Podemos lembrar das pessoas queridas em qualquer dia do ano. Mas a máquina da economia tem que girar, e então instituem-se datas para que as pessoas comprem mais. O Natal tornou-se mais uma delas.

Nas festas de fim de ano, até as pessoas que buscam ter uma vida ambientalmente menos impactante, aquelas que tentam reduzir o tamanho de sua pegada no planeta, acabam caindo na armadilha do consumo. Parece que quando o ano acaba, temos que dar um impulso no modelo insustentável no qual se transformou o padrão de produção e consumo da moderna sociedade global, para que a roleta que leva ao esgotamento dos recursos naturais não pare de girar.

Sempre achamos que precisamos mais do que temos. Sempre estamos insatisfeitos. Achamos que aquilo que vemos na vitrine dos shoppings pode nos fazer mais feliz e, ao conquistarmos essa efeméride, percebemos que temos uma próxima a conquistar. Frei Beto um dia disse que os shoppings são os templos modernos. Os produtos que compramos neles são nossos deuses, psicólogos, amigos. Só que essas coisas às quais damos tanto valor por tão pouco tempo, nos empobrecem, contaminam o planeta, esgotam os recursos naturais, viram lixo e nos tornam algozes daqueles que colocamos no mundo para perpetuar nossa espécie.

Hoje em dia, muitos dão mais valor a um bem material do que a uma vida humana. Outro dia ouvi um colega comemorar o fato de que o corpo de um suicida, que se jogou de um prédio, não caiu em cima do seu carro. Se valorizamos tão pouco a vida humana, o que dizer das inúmeras outras formas de vida que desrespeitamos e subjugamos apenas para nos trazer um conforto perdulário e socialmente injusto, porque não pode ser compartilhado por todos os nossos irmãos devido a uma simples questão de limitação do nosso planeta.

Há muito tempo que me incomodo com isso. Para não ser antipático, eu continuava a desejar boas festas, lançando mão de argumentos religiosos e sociais, a fim de sensibilizar as pessoas. Mas isso também tem me parecido hipócrita. Sendo o Natal uma festa Cristã, o Cristo fazia parte dessas minhas mensagens, para que o seu exemplo pudesse fazer as pessoas refletirem. Mas infelizmente o cristianismo distorcido tem agravado a situação. Inúmeras novas religiões “cristãs” prometem e pregam o sucesso financeiro e o apego material. Datas religiosas têm sido usadas para induzir o consumo. Além do Natal, a Páscoa tornou-se data de comercial, e até a Paixão de Cristo estimula o consumo do bacalhau, espécie sobreexplotada que pode desaparecer em alguns anos. Símbolos que são incompatíveis com a doutrinação consumista são esquecidos. Já perceberam que todos têm uma árvore de natal (geralmente exótica, artificial ou morta), mas cada vez vemos menos presépios? O Cristo nascido em uma manjedoura pobre não combina com o Natal opulento que costumamos celebrar. Rezamos pelos famintos do mundo e enchemos a pança de carne e bebidas. O cristianismo está sendo usado pela religião do dinheiro para fortalecer essa economia excludente, insustentável e destruidora da vida. E por que as igrejas ainda não se rebelaram?

Além disso, ultimamente tenho percebido que muitas religiões não cristãs têm uma doutrina e valores muito mais compatíveis com o respeito à natureza e com a noção de que o ser humano está intimamente ligado à malha que une todas as formas de vida. Isso é fundamental em uma época em que presenciamos o inútil esforço que o homem tem feito para se alijar da teia da vida.

Diante de tudo isso isso, não tenho mais vontade de ficar mandando mensagens de boas festas. A tendência é que, perpetuando o atual modelo reforçado anualmente pelas festas de fim de ano, a cada ano tenhamos menos a comemorar. A publicidade das “felicidades do consumo” ainda nos impedirá de ver, durante algum tempo, as catástrofes causadas pelas mudanças climáticas, a extinção das espécies, a destruição das florestas, a contaminação dos nossos alimentos, a fome dos que vivem em áreas degradadas. O conforto que o consumo nos proporciona ainda aplacará por algum tempo nossos raros momentos de indignação. A inexorável realidade é que um dia as consequências do nosso egoísmo chegarão às nossas portas, ou o que é muito pior, às portas daqueles que ainda não estão aqui.

Ao invés de desejar feliz Natal e feliz ano novo, desejo que todos nós mudemos a partir de hoje e durante todos os nossos próximos dias, independentemente da data, do ano, da estação. Que a compaixão que nos toca diante do sofrimento óbvio, nos toque também diante do sofrimento atual do planeta e do sofrimento futuro dos nossos semelhantes, estes não tão óbvios, já que estão escondidos no sistema que nos faz comprar e descartar sem refletir.
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*Texto adaptado de carta enviada aos meus amigos no Natal de 2010. Acredito que continua atual. Desculpem-me os que já leram.

domingo, 18 de dezembro de 2011

O código anti-florestal

Por Joaquim Maia Neto
Fonte:
 http://psoljundiai.blogspot.com/

No último domingo eu deveria ter postado um texto sobre o código florestal aprovado no Senado, que volta à Câmara devido às alterações feitas pelos senadores. Não o fiz porque o Senado demorou a disponibilizar o texto final, pois houve alterações feitas na última hora, durante a votação em plenário. Nesta semana, com o texto final em mãos, passei a compará-lo com o que fora aprovado na Câmara, a fim de atualizar as informações prestadas no artigo escrito à época da aprovação pelos deputados. Ao reler a página neste blog sobre as alterações promovidas pela Câmara na Lei atual, percebi que os senadores mantiveram os principais pontos prejudiciais à conservação ambiental.
O relator na Comissão de Meio Ambiente, senador Jorge Viana (PT-AC), alardeou um “consenso” que teria levado a um texto possível, fruto de acordo entre ambientalistas e ruralistas, que representaria grande avanço em relação ao documento oriundo da Câmara. Na realidade não foi isso que ocorreu. A favor do meio ambiente, apenas três pontos foram melhorados pelos senadores: a retirada da competência dos estados na definição de outras atividades passíveis de serem aceitas em APP, que passa a ser exclusiva da União; a necessidade de aprovação da localização da reserva legal pelo órgão ambiental (no texto da câmara a RL seria apenas informada no Cadastro Ambiental Rural) e; os incentivos econômicos para produtores rurais que desenvolvam ações de conservação.
O primeiro ponto foi imposição do executivo, que nunca quis descentralizar as decisões sobre intervenções em APP aos estados. A descentralização entrou no texto da Câmara por uma emenda do PMDB, que na época provocou protestos do Planalto. A aprovação da localização da Reserva Legal é condição para que ela cumpra seu papel, pois um simples cadastramento teria um caráter meramente cartorial. Já os incentivos econômicos representariam grande avanço se não fosse o profundo afrouxamento sobre os mecanismos de comando e controle presente no texto.
Assim como os mecanismos de comando e controle, os econômicos não funcionam isoladamente. O novo código aprovado pelo senado estendeu os incentivos econômicos àqueles que deixaram de cumprir a legislação e agora serão anistiados. O sentido desses incentivos deveria ser premiar os que cumpriram a Lei, mas, além disso, o Congresso resolveu usá-los para salvar o bolso daqueles que desmataram e deveriam recuperar o dano que causaram. Após auferirem lucros com a degradação ambiental, os desmatadores poderão receber dinheiro público para recuperar o passivo que geraram. Eles ganham degradando e a sociedade paga o prejuízo.
Não vou repetir os pontos negativos já destacados no artigo anterior. Exceto os três aqui destacados, todos os demais permanecem. Mas alguns pontos merecem ser discutidos.
Durante a campanha para o segundo turno das eleições presidenciais, a então candidata Dilma Rousseff, empenhada em angariar eleitores que haviam votado na Mariana Silva no primeiro turno, se comprometeu a vetar qualquer iniciativa que concedesse anistia aos desmatadores. É muito pouco provável que a hoje presidente cumpra com sua promessa, já que sua equipe, incluindo a atual ministra do meio ambiente, participou ativamente do acordo que levou à aprovação do código. A anistia consta explicitamente do texto e se estende a todos que descumpriram a legislação até 22/7/2008. Os que defenderam essa data como limite argumentam que ela coincide com a publicação do Decreto 6514 que regulamenta as sanções administrativas previstas na Lei de Crimes Ambientais e que a partir dessa data o Estado criou mecanismos para punir infratores. Não é verdade. Desde 1999, um ano após a publicação da Lei de Crimes Ambientais, havia regulamentação para aplicação de penalidades. O decreto 3179/1999 estabeleceu as punições e vigorou até a publicação do 6514 que o revogou. A data de 2008 para conceder anistia é fruto da esperteza dos ruralistas, sem nenhum fundamento que a justifique.
O novo código é um imenso retrocesso na legislação ambiental brasileira. Neste sentido, só perde para a Lei Complementar 140, sancionada pela presidente Dilma no último dia 8/12, que tira poderes da União, deixando os estados e municípios livres para fazer gestão ambiental sem que a União possa corrigir eventuais falhas. Na prática a Lei esvazia as atribuições do IBAMA. Este assunto também foi objeto de um artigo neste blog. A ministra do meio ambiente, Izabella Teixeira, servidora de careira do IBAMA, escapou de assinar a Lei, já que estava em Durban, na África do Sul, participando da COP 17. Deixou a tarefa inglória ao secretário executivo.
Voltando ao código, apenas para citar alguns retrocessos em relação à legislação vigente, há muitos pontos preocupantes além da ampla anistia. Com a publicação da nova lei passarão a ser consideradas pequenas propriedades rurais, para as quais a legislação ambiental é menos exigente, aquelas com até 4 módulos fiscais (até 400 ha na Amazônia). Hoje o tamanho máximo dessas propriedades é de 150 ha. Ampliou-se muito o rol de intervenções que passarão a ser consideradas de utilidade pública ou interesse social e consequentemente poderão ser desenvolvidas em APP. Até estádios de futebol poderão ocupar o lugar das matas ciliares, além de infra-estrutura de educação, lazer e cultura. A competência para estabelecer novas tipologias de empreendimentos passíveis de serem desenvolvidos em APP deixará de ser do CONAMA e passará à competência da Presidente da República.
Empreendimentos de carcinicultura e salinas implantados ilegalmente em ecossistemas frágeis e importantes, como apicuns e salgados, passam ser regularizados. Essas áreas, geralmente adjacentes a manguezais, são importantes para a reprodução de muitas espécies marinhas, inclusive o peixe-boi-marinho, que já está altamente ameaçado. Muitas propriedades amazônicas terão sua reserva legal reduzida de 80% para 50%. As compensações ambientais (contribuições financeiras para compensar obras muito impactantes) que hoje se destinam às unidades de conservação, poderão ser utilizadas até em parques urbanos voltados mais ao lazer do que à conservação. As regras para punir proprietários que queimam a vegetação nativa se tornarão muito mais complexas, dificultando sobremaneira a fiscalização. Enquanto hoje o proprietário deve proteger sua propriedade contra o fogo para não ser autuado, com a nova lei o fiscal vai ter que provar que o dono da terra agiu para que o incêndio acontecesse, o que é muito difícil na prática.
Apenas sete senadores votaram contra esse projeto de lei que tem como característica mais marcante a impunidade: Cristóvam Buarque (PDT-DF), Fernando Collor (PTB-AL), Lindbergh Farias (PT-RJ), Marcelo Crivella (PRB-RJ), Marinor Brito (PSOL-PA), Paulo Davim (PV-RN) e Randolfe Rodrigues (PSOL-AP). Veja a votação nominal na página do Senado.
Fazendo um balanço deste primeiro ano de governo de Dilma Rousseff, é possível constatar seu sucesso em desmontar a legislação ambiental brasileira. Como ministra da Casa Civil ela bem que tentou, mas não dispunha do poder que tem agora. Não é por acaso que a bancada ruralista se destacou tanto neste ano que termina. Ela não teria o êxito que teve se não houvesse um governo altamente alinhado com seus interesses. Foi curioso ver a senadora Kátia Abreu (PSD-TO), maior expoente da bancada, elogiar a ministra Izabella Teixeira pela sua atuação nas negociações do novo código. Isso mostra a sintonia do governo com os ruralistas. Nem adianta apelar ao bordão “veta Dilma”, porque isso é uma ilusão.

domingo, 11 de dezembro de 2011

O veneno nosso de cada dia

Por Joaquim Maia Neto

Editoria de Arte/Folhapress

Na semana passada a Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA divulgou o resultado do levantamento do Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos de Alimentos (PARA), referente ao ano de 2010. Os resultados são alarmantes. Foram avaliados 18 produtos muito comuns na alimentação do brasileiro e 27,9% das amostras apresentaram dados insatisfatórios. Uma amostra é considerada insatisfatória para o consumo humano quando nela são detectados resíduos de agrotóxicos não autorizados, agrotóxicos autorizados com resíduos acima dos limites máximos permitidos ou quando ocorrem ambas as situações. O maior problema é com os não autorizados. Em 26,2% das amostras foram encontrados resíduos de produtos não permitidos no Brasil, sendo que em 1,9% o problema ocorreu simultaneamente com a presença de agrotóxicos autorizados encontrados acima do limite máximo aceitável. Parece pouco, mas não é, principalmente se considerarmos que estes números são médios entre todos os itens pesquisados e que há alimentos específicos para os quais os percentuais são muito superiores.

O caso mais grave é o do Pimentão, com 91,8% de reprovação e com todas as amostras reprovadas contendo agrotóxicos proibidos. Morango, pepino, alface, cenoura, abacaxi, beterraba, couve e mamão também possuem índices não seguros. Para estes produtos é muito recomendável consumir apenas orgânicos.

O Brasil é o maior consumidor de agrotóxicos do planeta. Superou os EUA, antigo líder, em 2008. A média de consumo é de 5 Kg por habitante ao ano. Diversos produtos banidos em várias partes do mundo encontram no Brasil o ambiente que necessitam para continuar sobrevivendo, pois nossa legislação é frouxa. Dos 50 princípios ativos mais utilizados aqui, 20 são proibidos na União Europeia. O endosulfan, muito utilizado no pimentão, já foi banido nos EUA e na China, mas ainda pode ser utilizado no Brasil até 2013. A ANVISA tem enfrentado muitas ações judiciais contra resoluções proibindo o uso de agrotóxicos. É comum que os fabricantes consigam liminares que permitem a continuação da comercialização de produtos perigosos. 
Aplicação aérea de agrotóxicos
Fonte: http://www.envolverde.com.br/

O uso excessivo de agrotóxicos no Brasil é fruto da ação de empresas transnacionais que, enfrentando grandes restrições nos seus países de origem, redirecionam seus investimentos para países nos quais conseguem impor o consumo de seus produtos. Nosso país adota políticas que favorecem essa prática. O governo federal concede isenções e reduções tributárias a vários produtos utilizados como “defensivos” agrícolas, inclusive aqueles altamente perigosos, como o já citado endossulfan e o metamidofós, como forma de fomentar a agricultura. Tal política é um grande equívoco, pois leva a sociedade a financiar seu próprio envenenamento. Enquanto o governo implementa políticas extremamente tímidas de incentivo à agricultura orgânica, com parcos recursos destinados à área, subsidia pesadamente a agricultura envenenada com desoneração tributária. Os produtos orgânicos já são naturalmente menos competitivos e os incentivos tributários aos agrotóxicos os tornam ainda mais caros quando comparados aos produtos convencionais. Além da renúncia tributária sobre os agrotóxicos, o governo se onera adicionalmente com os gastos do sistema público de saúde direcionados ao tratamento de doenças causadas pelo envenenamento a que estão sujeitos trabalhadores rurais e consumidores.

As pessoas acreditam que, ao adquirirem hábitos alimentares que privilegiem a ingestão de vegetais, estão trabalhando a favor de sua saúde e qualidade de vida. Isso deveria ser verdade se não fosse a quantidade de veneno existente em nossos vegetais. Não há agrotóxico seguro. Os seres vivos são muito semelhantes, em especial os animais. Se um princípio ativo é prejudicial a um inseto considerado praga agrícola, ele também será prejudicial ao ser humano. A diferença é apenas de escala. Se o agrotóxico mata uma lagarta por meio de processos bioquímicos que interferem negativamente em seu metabolismo, provocará o mesmo efeito ou efeito muito parecido em um humano, com a diferença de não levar à morte instantânea devido à dosagem relativa à massa corporal da pessoa, mas poderá provocar doenças crônicas. Análises têm encontrado resíduos de agrotóxicos em secreções e tecidos humanos em todo o país. Há casos de altas dosagens de agrotóxicos em leite humano. Taxas altas desses produtos no organismo estão relacionados à maior incidência de câncer, déficit de atenção, problemas neurológicos, disfunções glandulares, infertilidade, malformação em fetos e mutagênese, podendo em muitos casos reduzir consideravelmente o tempo e a qualidade de vida do afetado.

Os efeitos dos agrotóxicos não se restringem à saúde humana. Diversos impactos ambientais são causados pelo uso excessivo e inadequado desses produtos químicos. Sua aplicação contamina o solo e a infiltração leva o produto até os aquíferos, que muitas vezes são utilizados no abastecimento humano. Aviões são utilizados para espalhar o produto na lavoura e essa forma de aplicação promove a dispersão além dos limites da cultura que se deseja “proteger”. A biota é extremamente afetada. Há um desequilíbrio ecológico causado pela eliminação de algumas espécies. Espécimes resistentes permanecem e propiciam o surgimento de populações de pragas imunes à dosagem aplicada, dando início a um círculo vicioso que leva à aplicação de dosagens cada vez maiores e de produtos cada vez mais agressivos. O processo de bioacumulação dissemina o veneno pela cadeia trófica e assim seus efeitos atingem uma magnitude muito grande. As pessoas e os animais podem se contaminar pela ingestão de organismos que concentram grandes quantidades de resíduos químicos, como por exemplo, as aves que ingerem insetos contaminados. Os ambientes aquáticos (rios, lagos, mar) acabam concentrando grande parte da poluição química, pois a drenagem natural faz com que a água contaminada escoe até atingir os corpos hídricos. Como a pesquisa da ANVISA é focada apenas nos produtos frequentes na dieta humana, não há como calcular o impacto causado pelas grandes monoculturas de soja e cana-de-açúcar. Certamente essas duas lavouras contribuem muito para a poluição ambiental causada por agrotóxicos, devido à extensão da área que ocupam.

Quando da introdução dos organismos geneticamente modificados na agricultura brasileira alardeou-se que um dos grandes benefícios dos transgênicos seria a redução no uso dos agrotóxicos. O que ocorreu foi exatamente o contrário. A indústria dos transgênicos em geral faz parte da mesma cadeia produtiva dos agrotóxicos e tem direcionado seus esforços apenas ao aumento da produtividade e à resistência a herbicidas. No caso dos herbicidas, com o desenvolvimento de variedades geneticamente resistentes, o uso do glifosfato explodiu.

Urge alterar completamente a política brasileira de agrotóxicos. É necessário eliminar incentivos que estimulem o aumento na utilização de produtos tóxicos e direcionar estes incentivos para a agricultura orgânica. O fortalecimento das instituições reguladoras é essencial. Ainda que seja louvável a atitude da ANVISA em divulgar anualmente os níveis de contaminação, é injusto jogar a responsabilidade apenas no consumidor. A fiscalização do uso de agrotóxicos é quase inexistente. IBAMA e ANVISA atuam na aprovação e registro dos produtos, mas não têm condições de acompanhar adequadamente o mercado e o contrabando de substâncias proibidas. Os processos de banimento são morosos e concedem prazos de adaptação muito longos, privilegiando o interesse da indústria em detrimento do interesse público. A justiça deveria responsabilizar os fabricantes pelos danos à saúde e ao meio ambiente causados pelos agrotóxicos. A situação dos alimentos contaminados é muito pior do que o caso da indústria do tabaco, pois na questão dos agrotóxicos, os consumidores consomem produtos inadequados sem saber que estão se envenenando.

Paralelamente ao incremento da fiscalização e da implantação de mecanismos econômicos de desestímulo ao uso de agrotóxicos, deveria haver um trabalho de educação da população. A opção por produtos grandes, vistosos, sem defeitos, por aqueles de clima diverso do nosso ou ainda por produtos fora de época é fator que estimula o mercado a usar mais agrotóxicos, colocando o consumidor em risco maior. A reação dos vegetais ao ataque de outros organismos pode se manifestar na forma de uma pequena deformidade do fruto ou outra parte comestível. Insetos podem causar pequenos danos na aparência dos produtos sem, contudo, prejudicar sua qualidade. Vegetais cultivados fora de seu clima ou época ideal ficam mais suscetíveis aos ataques de organismos prejudiciais, incentivando os produtores ao uso de substâncias químicas nocivas. O consumidor bem orientado aprenderá a não valorizar apenas a aparência e a optar por produtos que causem menos impacto ao meio ambiente e à sua saúde, o que não pode levar à omissão do Estado em cumprir o seu papel regulador, impedindo que o lucro de poucos se transforme na doença de muitos.
Divulgação ANVISA

domingo, 4 de dezembro de 2011

Golpe baixo

Por Joaquim Maia Neto
É impressionante como o poder do capital supera divergências ideológicas e rivalidades políticas. A revista Veja, um dos mais tendenciosos veículos de imprensa do país, é capaz de se alinhar com o governo quando o assunto é a defesa dos interesses das empreiteiras, do agronegócio e das petroleiras. É o que podemos deduzir da edição distribuída neste domingo (nº 2246), com três matérias “ambientais” na sequência (páginas 140 a 152). Em uma das matérias a revista afirma, referindo-se ao código florestal aprovado recentemente nas comissões do Senado, que “O novo código é o primeiro passo para conciliar preservação e desenvolvimento econômico”. Em outra, destaca cientistas que fraudaram pesquisas que associam o aquecimento global à atividade industrial, mas omite uma infinidade de estudos sérios que indicam a natureza não natural do aumento de temperatura que testemunhamos nos dias de hoje. Mas é a matéria de capa que será tratada neste artigo.

A publicação semanal dos Civita até que presta alguns serviços ao país denunciando falcatruas que ocorrem na administração pública, mas costuma exagerar, beirando a leviandade, quando os fatos comprometem o governo do PT. Não tem a mesma combatividade contra os tucanos. Simplesmente esqueceu o escândalo da inspeção veicular existente no Rio Grande do Norte, com conexões em São Paulo, que envolve tucanos de alta plumagem. Será que essa postura guarda alguma relação com o fato de a Editora Abril não ter sido contemplada no pacotão de salvamento das empresas de comunicação promovido pelo governo Lula, que salvou as Organizações Globo? De qualquer maneira, a liberdade de Veja é necessária num estado democrático de direito. É melhor convivermos com os excessos inerentes à democracia, do que com a censura.

O “estranho” alinhamento de Veja com o governo veio com uma matéria escandalosamente superficial, recheada de informações parciais e distorcidas, voltada a desqualificar um trabalho de militância ambientalista de um grupo de estrelas da Rede Globo. Dezenove atores globais lançaram um movimento (movimentogotadagua.com.br) que tem como principal instrumento de divulgação um vídeo no qual criticam a construção da futura Usina Hidrelétrica de Belo Monte, projetada para o Rio Xingu, no estado do Pará. De acordo com a revista, alguns vídeos postados na internet com a participação de estudantes de engenharia e economia da Unicamp e da UnB, além do apresentador Rafinha Bastos, famoso por suas declarações polêmicas de caráter homofóbico, racista, machista e discriminatório, teriam “nocauteado” as estrelas da Globo por meio de argumentos inteligentes e supostamente calcados em pesquisas, em oposição as “tagarelices” e à “desinformação” dos globais, nas palavras da Veja.

Os vídeos que Veja utiliza para fundamentar sua matéria, são sátiras ao filme do movimento contrário à usina e têm uma linha fascista pois, apesar de aparentemente rebaterem as informações dos globais com dados técnicos, é evidente a motivação voltada à desqualificação das pessoas dos atores, apenas por estarem vinculados profissionalmente a uma emissora com perfil reacionário. São assim, mais reacionários do que a própria Rede Globo.

O histórico de comprometimento das Organizações Globo com o atraso do país, efetivado na sua estreita relação com setores oligárquicos da política nacional, faz com que os vídeos dos estudantes e a matéria de Veja tenham algum apelo junto aos “inconformados” mais desavisados que, caindo na armadilha fascista da desqualificação pessoal por meio do rótulo “Global” imputado aos artistas, atacarão o movimento pensando atacar a Globo. Estes que hoje rotulam os artistas para desqualificá-los, já fizeram o mesmo com comunistas, petistas, socialistas, ambientalistas, religiosos e tantos outros, tratando-os como ingênuos, irresponsáveis, loucos ou lunáticos. Da mesma forma já desqualificaram ONGs sérias, com o argumento de que estão “a serviço de interesses estrangeiros”. Por que não fizeram o mesmo com o movimento “Sou Agro”, também estrelado por (outros) artistas globais? Será que é porque seus interesses ocultos são coincidentes? Cabe perguntar se a motivação de Veja e dos estudantes é apenas o interesse no debate construtivo ao desenvolvimento do país ou se há alguma influência das empreiteiras que vivem de dinheiro público, engordam, direta ou indiretamente, as carteiras de publicidade do grupo Abril e contratam engenheiros treinees recém-formados, como serão em breve os “cultos” atores do Youtube favoráveis à Belo Monte.

Feitas as devidas considerações acerca da motivação da reação, vamos ao debate sobre a usina. É preciso que se diga que Veja omitiu o fato de que cerca de 350 cientistas e intelectuais brasileiros de diversas instituições públicas e privadas, incluindo renomadas universidades, encaminharam à presidente Dilma uma carta criticando a construção da Usina de Belo Monte, com argumentos científicos que justificam a oposição ao projeto.

Um dos supostos “golpes” dos estudantes que teria levado a nocaute os artistas, é a constatação de que o Brasil precisa de incremento na produção energética para fazer frente à demanda representada pela duplicação do consumo nos próximos dez anos, considerando a projeção de crescimento de 5% ao ano. Se o Brasil não atender a esta demanda “a economia vai ficar travada”. Este é um argumento baseado na lógica de que desenvolvimento é igual a crescimento, uma tese que vem sendo desmontada pela chamada “economia verde”. Fruto da ganância capitalista, a política de crescimento contínuo é insustentável e responsável por danos ambientais, geração de resíduos e esgotamento dos recursos naturais. Tal política sequer garante distribuição de renda e justiça social, e o colapso ambiental que provoca leva à crise econômica futura.

Veja é brilhante na arte da manipulação de números e informações. Destaca o cálculo de um engenheiro mostrando o percentual de floresta que será alagada em relação à área total da Amazônia Legal. Claro que esta porcentagem é pequena, mas Veja não informa que a Amazônia Legal não é só floresta e “esquece” que Belo Monte é apenas uma das usinas projetadas para a região. Além disso, os impactos de uma UHE sobre o ecossistema não são restritos às árvores que serão suprimidas, mas contemplam a alteração da dinâmica hidrológica, a obstrução do trânsito da fauna aquática, a eutrofização do ambiente, entre outros. Deve-se considerar o percentual de espelho d’água impactado pelo conjunto das usinas em relação à bacia hidrográfica. Dizer que metade da área alagada é o próprio leito do rio é uma típica distorção dos fatos, pois transformar um ambiente aquático lótico (água corrente) em lêntico (água parada) é uma alteração ambiental negativa altamente significativa.

Outra grosseira manipulação dos fatos é cometida acerca da diferença de vazão do Rio Xingu entre os períodos de maior cheia e de maior seca. Utilizando os próprios dados publicados pela revista, percebemos que a vazão mínima é de menos de 3% da vazão máxima. A comparação que a revista usa, mostrando que esta vazão mínima pode encher 1600 piscinas olímpicas por hora, só não me faz rir porque eu sei que ela engana leitores que não estão familiarizados com o assunto. Já que é para manipular números, vamos dar outro exemplo. Se você tem um copo com 250 ml de água e outro com 3% deste volume, ou seja, 7,5 ml, o que você dirá deste copo? Que está praticamente vazio, não é?
Fonte: http://www.paginainternacional.com.br/

Com base no depoimento de um cacique, Veja afirma que os índios estão satisfeitos com a obra. Uma rápida busca no Google mostrará diversos vídeos de manifestações indígenas contra a usina. Mesmo que nenhum palmo de terra indígena seja alagado, o que é contestado por muitos pesquisadores e engenheiros, a preocupação dos povos do Xingu é com a alteração ambiental que a obra causará e que poderá impactar suas terras de maneira negativa. Qualquer barramento de rio é desastroso para a ictiofauna, que é uma fonte de alimento importante para índios e ribeirinhos.

Outro exemplo de desqualificação reverberada pela Veja é a fala de uma estudante da Unicamp a respeito da localização do Parque do Xingu. Qualquer brasileiro médio, ao olhar o mapa, dirá que o Parque está abaixo da barragem, pois em geral as pessoas, ainda que equivocadamente, consideram que algo que está mais ao sul “está mais abaixo”. Nem todos sabem que, tecnicamente, em uma bacia hidrográfica algo está mais abaixo quando está a jusante, e não a montante, como é o caso do Parque em relação à barragem. Utilizar uma fala que é comum na linguagem popular para desqualificar o vídeo é altamente tendencioso. A distância de mil quilômetros do Parque do Xingu até a barragem é um mero detalhe, porque muito mais próximo do que isso estão várias outras terras indígenas e importantes unidades de conservação, como a Reserva Extrativista Rio Xingu e a Estação Ecológica da Terra do Meio, que sofrerão indiretamente os impactos da barragem.

Energia hidrelétrica não é energia limpa. Maitê Proença está certa. A frase simplista, quase infantil de um estudante da Unicamp, que diz que é limpa porque a água sai como entrou, não deveria embasar matéria jornalística de uma revista que se diz séria. Reservatórios de usinas hidrelétricas emitem metano oriundo da matéria orgânica morta em consequência do alagamento, em quantidade muito superior aos processos naturais que ocorrem na floresta, mesmo quando é feito o desmatamento das áreas a serem alagadas, pois este procedimento mitiga o impacto mas não o neutraliza. Além disso, o conceito de energia limpa fundamentado apenas na emissão de gases do efeito estufa é muito pobre, pois há vários outros impactos ambientais relacionados à geração de energia hidrelétrica.

Quanto ao fator de capacidade da usina, mesmo que seja de 41% como afirma o “nocauteador” engenheiro Cássio Carvalho, este número é inaceitável para os dias atuais. A média brasileira de 52%, puxada para baixo pela ineficiente UHE de Balbina, é bem maior que a de Belo Monte. Diversos técnicos afirmam que Belo Monte será a usina mais cara e menos produtiva do país. Não podemos aceitar que uma usina nova seja tão menos eficiente do que a média nacional, pois os avanços tecnológicos ao longo do tempo deveriam levar ao aumento da eficiência energética.
Usina termo solar concentrada no deserto de Mojave,
Califórnia, EUA

Finalmente, um tema que tem pautado a discussão acerca da matriz energética: o custo da produção do kilowatt/hora. É verdade que a energia hidrelétrica é muito barata. Um kilowatt/hora custa no Brasil cerca de R$ 0,05. É bem menos que os valores das fontes alternativas. Porém, é um equívoco deixar de investir na diversificação da matriz, pois é justamente o aumento da produção que barateia o custo. A comparação do custo da energia hidrelétrica com o de energias mais limpas não considera o custo das externalidades negativas inerentes aos impactos ambientais e sociais das usinas hidrelétricas. Hoje o Brasil já produz energia eólica competitiva. A revista Veja cita custos de investimentos em energias alternativas sob os rótulos de “energia eólica” e “energia solar”. Outra desinformação, não dos artistas, mas da Veja. O custo a que Veja se refere provavelmente é o da energia fotovoltaica, aquela produzida a partir de painéis solares, muito cara e pouco eficiente. A energia solar mais eficiente é a termo solar concentrada (Concentrated Solar Power). Os EUA têm aumentado muito o investimento neste tipo de geração e a Alemanha planeja investir no mesmo sentido em países que tenham potencial, como os do norte da África. O custo de um kilowatt/hora deste tipo de energia gira hoje na casa dos R$ 0,48, mas pode ser reduzido para a metade disso em dez anos com os investimentos iminentes. Ainda é muito quando comparado ao custo da energia hidrelétrica, mas não é nenhum absurdo quando se considera o potencial de redução de impactos ambientais.

É lamentável ver uma das raras iniciativas em prol do meio ambiente vinda de artistas formadores de opinião sendo bombardeada por uma matéria de capa tendenciosa em uma das revistas de maior circulação no país, com base em omissões e manipulação de dados. Só é possível ter acesso à informação de qualidade consultando veículos de imprensa alternativos. A Internet ajuda muito. Graças a ela podemos desmontar farsas como a da Veja e ver que o nocaute não passa de golpe baixo.