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domingo, 21 de agosto de 2011

Em busca do céu escuro

Por Joaquim Maia Neto
A humanidade surgiu e evoluiu convivendo com a beleza celeste. Como animais de hábitos diurnos que somos, a noite restringia grande parte das nossas atividades, propiciando o descanso necessário para o enfrentamento da luta diária pela sobrevivência. Ao mesmo tempo representava certo perigo, dada nossa dificuldade em perceber potenciais ameaças no ambiente natural noturno.
O medo associado à noite levava o homem a procurar abrigos que o protegessem até o raiar do sol, mas esse não é o único sentimento que tal efeito da rotação terrestre provocava em nossos antepassados. Os elementos celestes visualmente perceptíveis após o pôr do Sol sempre despertaram a curiosidade e o fascínio humanos. Navegadores utilizavam os astros como instrumentos de localização espacial. A observação do infinito até hoje nos leva a refletir sobre nossas origens e nosso destino no universo.
Quantas crianças se divertiram descobrindo constelações? Quantos já ficaram boquiabertos observando a imponência da via láctea, representada no céu como um imenso “caminho branco” formado por milhões de sistemas estelares?
Se estiver lendo este artigo à noite, pare um pouco, vá até sua janela e observe o céu. O que você vê? Como é muito provável que esteja em um ambiente urbano, acredito que não viu muitos astros. O motivo é a poluição. Não estou me referindo à fumaça de carros ou indústrias. Você pode até estar em um local onde a qualidade do ar é boa e ainda assim não ver plenamente o céu.
Quase todas as pessoas já ouviram falar de poluição atmosférica, hídrica, sonora e até visual, mas pouca gente sabe que existe um tipo de poluição que muitas vezes passa despercebida e que é tão importante quanto as demais: a poluição luminosa - um problema que vem se agravando ano após ano, principalmente nas grandes cidades e regiões metropolitanas.
Edifício em Brasília durante
a madrugada

A excessiva iluminação artificial noturna tornou-se parte da paisagem urbana e já é vista com naturalidade pela maioria das pessoas. Empresas utilizam luminárias, refletores, lâmpadas e painéis luminosos para divulgar suas marcas e produtos. Arquitetos, paisagistas e designers desenvolvem projetos de iluminação para destacar fachadas, jardins e monumentos. Cidadãos reivindicam e governos instalam cada vez mais lâmpadas nos logradouros públicos e vias de circulação, geralmente sob o pretexto de tornar as cidades e as estradas mais seguras. Até árvores são criminosamente cortadas para não bloquearem a passagem da luz.
A iluminação noturna, como toda poluição, é causadora de impactos ambientais altamente significativos. Os processos ecológicos evoluíram em profunda sintonia com os movimentos terrestres e com o ciclo lunar. O fotoperíodo regula diversos mecanismos fisiológicos, tanto nos vegetais como nos animais. A alteração artificial do padrão claro-escuro existente na natureza é prejudicial aos seres vivos, sendo mais impactante quanto maior a intensidade luminosa. Essa alteração prejudica a orientação espacial, a reprodução, o forrageamento, a migração e diversos mecanismos ecológicos, comportamentais e metabólicos dos animais. A luz desorienta insetos, como abelhas e mariposas e atrai vetores de doenças para as áreas habitadas por humanos. Tartarugas-marinhas recém-nascidas podem correr para a morte, na direção contrária ao mar em locais muito iluminados. Aves migratórias se perdem e alguns animais passam a se alimentar durante períodos muito maiores, provocando o aumento populacional descontrolado. Plantas deixam de florescer e frutificar. O resultado é o desequilíbrio ecológico. Há espécies que não se adaptam e desaparecem localmente. As endêmicas podem chegar a ser extintas.
O Homo sapiens não escapa aos impactos da iluminação noturna excessiva. Vários estudos demonstram que a exposição frequente e intensa à luminosidade noturna artificial provoca a redução da produção de melatonina no organismo, um hormônio que tem como principal função a regulação do sono. Os mesmos estudos mostram que níveis baixos de melatonina estão associados com maior incidência de câncer de mama¹, ².
Composição a partir de imagens
de satélite da Terra obtidas à noite,
mostrando as áreas luminosamente
poluídas

O fenômeno da poluição luminosa pode parecer pontual, restrito a pequenas áreas, mas não é, já que afeta 18,7% da superfície do planeta. É, portanto, um problema global. Em 1988 foi fundada a International Dark-Sky Association (IDA), uma entidade que tem como objetivo preservar e proteger o ambiente noturno. Imagens de satélite da Terra, quando captadas no hemisfério onde é noite, permitem perceber a intensidade do problema. Observa-se uma grande concentração de pontos luminosos nas áreas mais densamente habitadas. Cada vez temos que ir mais longe para ver um céu estrelado. As grandes unidades de conservação passaram a prestar um novo serviço ambiental, que é a “proteção do céu escuro”.
No Brasil, praticamente não há legislação que regule esse tipo de poluição. Há apenas uma portaria do IBAMA, referente à proteção das tartarugas-marinhas e leis municipais em duas cidades que protegem áreas de observatórios. É perfeitamente possível aferir a intensidade luminosa, o que permite estabelecer padrões regulatórios. Além disso, existe tecnologia de produção de lâmpadas mais eficientes para iluminação pública, como as de vapor de sódio, que reduzem o fluxo de luz para o céu, evitando o desperdício. Pequenas mudanças nas atitudes das pessoas e nas políticas públicas podem ajudar bastante. Instalar lâmpadas apenas com finalidades estéticas ou onde não é necessário deve ser evitado. Ao invés de iluminar estradas, os administradores podem simplesmente instalar sinalização de solo reflexiva.
Além da poluição, a intensa iluminação gera um enorme desperdício de dinheiro e agrava outros problemas ambientais. Nos EUA são gastos US$ 2 bilhões anualmente com iluminação ineficiente. A construção de novas usinas hidrelétricas na Amazônia brasileira, que geram desmatamento, é motivada entre outras coisas, pelo crescente aumento do consumo energético, boa parte dele para iluminação.
Quando eu era criança diziam que, ao ver uma “estrela cadente”, que na realidade é um meteorito incendiado pelo atrito com a atmosfera, deveríamos fazer um pedido de algo que desejássemos muito. Caso eu ainda consiga ver alguma neste céu de Brasília tão luminosamente poluído, vou pedir para que as pessoas apaguem as luzes à noite para que eu possa voltar a ver os vaga-lumes que me encantavam na infância, deitar ao lado do meu filho, que ainda tem medo de escuro, e dormir em paz.
1. BLASK, D. E. et alii. Melatonin-Depleted Blood from Premenopausal Women Exposed to Light at Night Stimulates Growth of Human Breast Cancer Xenografts in Nude Rats. Cancer Res 2005; 65 (23): 11.174–11.184
2. SOUSA-NETO, J. A. & SCALDAFERRI, P. M. Melatonina e câncer – revisão da literatura. Revista Brasileira de Cancerologia 2005; 51(1): 49-58

Para saber mais veja:

FERNANDES, G. W.; COELHO, M. S. & CAIRES, T. O impacto ambiental da poluição luminosa. Especial Scientific American Terra 3.0. 2010: 40-47 (disponível em http://www.amda.org.br/objeto/arquivos/308.pdf)

http://www.environmentalleader.com/2011/07/21/light-pollution%E2%80%99s-dark-realities



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